PL 2.498/15

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Centros de Atenção para Usuários Compulsivos da Internet
Autor: Aureo – SD/RJ


RESUMO EXECUTIVO
O projeto pretende alterar o Marco Civil da Internet para obrigar os provedores de conexão e os provedores de aplicações a criar centros de atenção aos usuários compulsivos, com a finalidade de orientá-los quanto ao uso da internet de forma mais controlada, moderada e menos prejudicial ao usuário dependente.
Para tanto, a proposição acrescenta quatro novos artigos à legislação, determinando que esses centro de atenção deverão ser mantidos em cada unidade da federação em que os provedores atuarem, definindo usuários compulsivos e direcionando formas de tratamento. Além disso, o texto prevê aplicação das sanções previstas no Código de Defesa do Consumidor para o descumprimento dessas disposições.
O projeto é mais severo com provedores de aplicações de internet do que com fabricantes de cigarros e bebidas alcoólicas, que, diante da liberdade de escolha do consumidor, não possuem e nem deveriam possuir qualquer obrigação de reabilitar ou arcar com tratamentos de indivíduos eventualmente prejudicados pelo consumo de seus produtos reconhecidamente aditivos e nocivos à saúde.
Apesar de preocupada com o bem-estar do cidadão, a proposta não tem amparo científico, pois o uso excessivo da internet sequer é considerado como um transtorno pela Organização Mundial da Saúde. Muito menos existe um modelo de diagnóstico e tratamento reconhecido pelos órgãos competentes. De toda forma, ainda que os serviços digitais oferecessem riscos, a solução deveria partir do Poder Público por meio de medidas de saúde pública.
Exigir que os provedores mantenham esses centros de atenção configura, portanto, intervencionismo excessivo, discriminatório, ilegal e inconstitucional.
Recomendamos, portanto, a REJEIÇÃO INTEGRAL da proposição.


A FALTA DE EMBASAMENTO CIENTÍFICO PARA UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA
● O crescimento da importância desses das aplicações de internet infelizmente provoca a adoção de excessos regulatórios das mais diferentes vertentes que desconsideram a natureza jurídica dos serviços digitais e que, no limite, podem levar até mesmo à inviabilização do uso das novas facilidades oferecidas pela internet.
● A internet é hoje um motor econômico e social, fonte de informação e do desenvolvimento de relações humanas, além de instrumento de trabalho de uma parcela significativa da população, desde o pequeno empresário que divulga e vende seus produtos através rede até artistas que lá baseiam todo o seu trabalho.
● O projeto assim deturpa a natureza colaborativa, o valor social, artístico e econômico do mundo digital, tratando-o, em vez disso, como uma fonte de patologias psicológicas.
● Poucas invenções mudaram o mundo tão completamente – e tão rapidamente – quanto os recursos tecnológicos. A maneira como gastamos nosso tempo, sem dúvida, mudou e os hábitos tecnológicos fazem parte de nossas vidas cotidianas.
● Contudo, ao estender o uso de conceitos médicos ao uso da tecnologia, acabamos excluindo outros entendimentos úteis e possibilidades de ação. Assim, apesar de bem intencionada, a proposição se propõe a endereçar a saúde pública sem qualquer amparo científico, desconsiderando também os benefícios do meio digital e a necessidade de construção de uma educação tecnológica na população.
● Mesmo após anos de estudos, o uso excessivo da internet não foi reconhecido como um transtorno pela Organização Mundial da Saúde, pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e nem pela Classificação Internacional de Doenças (CID-11).
● A literatura da área chega a afirmar que é necessário definir e diferenciar claramente o que constitui um transtorno mental que está causando grandes consequências adversas e distingui-lo de apenas hábitos indesejáveis pelos usuários ou mesmo condições que podem ser endereçadas sem tratamentos.
● O uso da tecnologia ativa praticamente os mesmos circuitos cerebrais de prazer que outras diversas atividades cotidianas, como exercícios, alimentação e contato físico. Não havendo respaldo para afirmações de que estamos diante de um quadro de epidemia de pessoas compulsivamente viciadas em internet e redes sociais, como o faz a proposição.
● O Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido apontou em um estudo que aqueles que parecem mais viciados em jogos eletrônicos não apresentam mais problemas psicológicos ou de saúde. Outra descoberta é que os indivíduos que mais possuem problemas em suas vidas offline são aqueles que têm as experiências mais negativas online1.
● Além disso, existem muitas atividades diferentes que podem incluir o uso da internet, algumas das quais podem estar potencialmente associadas a distúrbios e vícios distintos. A tecnologia se estabeleceu como um aspecto tão integral da vida cotidiana, tanto profissional quanto doméstica, que pode ser difícil identificar se e quando o uso da internet por uma pessoa se tornou problemático.
● Como resultado, sequer há consenso entre os profissionais da área da saúde sobre o reconhecimento de eventual dependência da internet como uma condição por si só, muito menos sobre o estabelecimento de uma estrutura de diagnóstico e tratamento.
● Não é por outro motivo que os comportamentos citados no texto da proposição para o diagnóstico de usuários compulsivos são de difícil constatação, como perda de noção de tempo e fadiga, os quais podem estar associados a outras condições de saúde, dependem de perícia de profissionais da área e, portanto, não devem ser simplesmente taxados pela legislação.
● O caminho adequado para o tratamento da questão passa primeiramente pela construção de conhecimento científico a partir de estudos e pesquisas aprofundados e não a partir da responsabilização presumida dos provedores. Enquanto uma demanda de saúde pública, o tema precisa ser assim discutido, como ocorreu no caso de dependente químicos.
● Os chamados Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) são resultados de um trabalho de planejamento e investimento público estruturados a partir de normas bem fundamentas do Ministério da Saúde. Interessante notar que mesmo nestes casos sérios de dependência química fica expresso o papel central do Sistema Único de Saúde (SUS).


A TRANSFERÊNCIA DE RESPONSABILIDADE ESTATAL PARA A INICIATIVA PRIVADA 1 https://link.springer.com/article/10.1007/s11097-020-09669-z

● Ainda que os serviços digitais oferecessem riscos à saúde pública, a solução deve partir do Poder Público, não podendo ser transferida para os provedores que não têm nenhuma responsabilidade ou controle sobre a forma que os indivíduos utilizam a internet, assim como ocorre com inúmeros outros produtos legalizados e que causam mal à saúde dos usuários.
● Hoje, não se obriga as indústrias de bebidas alcoólicas e cigarros a disponibilizarem centros de reabilitação ou tratamentos de saúde àqueles que comprovadamente são dependentes dos produtos.
● Da mesma forma, não se obriga as indústrias de refino de açúcar e todas as demais indústrias que empregam o açúcar em sua cadeia produtiva a tratar casos de obesidade, cáries, diabetes ou mesmo compulsões alimentares.
● Portanto, exigir que os provedores se responsabilizem por supostos danos causados pelo uso da Internet, sem nenhuma evidência científica (ao contrário do que ocorre com as indústrias do álcool, tabaco e açúcar), configura intervencionismo estatal excessivo, discriminatório, ilegal e inconstitucional.


O PAPEL DO CONSUMIDOR E A LIBERDADE DE ESCOLHA
● Além de carecer fundamentos científicos, a proposição desconsidera o livre-arbítrio do consumidor, reconhecido, inclusive pelos tribunais, mesmo nos casos de fumantes compulsivos versus a responsabilização de fabricantes de cigarros e bebidas:

Dessa forma e alertado, por meio de amplos debates ocorridos tanto na sociedade brasileira, quanto na comunidade internacional, acerca dos malefícios do hábito de ingestão de bebida alcoólica, é inquestionável, portanto, o decisivo papel desempenhado pelo consumidor, dentro de sua liberdade de escolha, no consumo ou não, de produto, que é, em sua essência, nocivo à sua saúde, mas que não pode ser reputado como defeituoso […] o livre arbítrio do consumidor pode atuar como excludente de responsabilidade do fabricante.(STJ, REsp 1261943)
Em realidade, afirmar que o homem não age segundo o seu livre-arbítrio em razão de suposta “contaminação propagandista” arquitetada pelas indústrias do fumo, é afirmar que nenhuma opção feita pelo homem é
genuinamente livre, porquanto toda escolha da pessoa, desde a compra de um veículo a um eletrodoméstico, sofre os influxos do meio social e do marketing. É desarrazoado afirmar-se que nessas hipóteses a vontade não é livre. (STJ, REsp 1.113.804)
● Cabe ao usuário decidir o que, quando e o quanto quer consumir, no momento que desejar. Da mesma, também cabe a ele decidir quando parar e buscar ferramentas, caso necessite, para reformular hábitos que considere inadequados, assim como ocorre com alimentos, por exemplo.
● A única diferença é que, como o uso da internet é um fenômeno relativamente recente em comparação com a maioria das outras atividades conhecidas por criar hábitos, ainda é necessário que os usuários se conscientizem.
● Não há, portanto, qualquer justificativa para a responsabilização dos provedores. O próprio Código de Defesa do Consumidor reconhece a necessidade de comprovação de culpa, causa e consequência.
● Assim, não existe na legislação brasileira nenhum respaldo para uma responsabilidade objetiva que resulte na obrigação de reabilitar ou arcar com tratamentos médicos ou similares dos indivíduos supostamente prejudicados pelo consumo de produtos ofertados licitamente.
● Dizer que uma determinada tecnologia é viciante torna invisível a necessidade de consolidação e investimentos em uma educação tecnológica em nosso país que permita aos cidadãos a formação de bons hábitos e mesmo a consciência para identificar comportamentos indesejados.
● Em nenhum campo ou mercado, a liberdade de escolha consiste na ausência de influências externas, mas no exercício de sua autonomia diante das opções. As próprias empresas de tecnologia oferecem recursos de controle e aplicativos para monitorar e limitar o uso para usuários que assim desejem, opções de configuração de notificações e conteúdo, além de inúmeras ferramentas voltadas ao bem-estar e ao desenvolvimento de hábitos saudáveis.

Por todas as razões acima expostas, o PROJETO proposto deve ser REJEITADO.