PL 11.252/18

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Responsabilidade Penal de Provedores de Internet

Autor: Dep. Carlos Henrique Gaguim (DEM/TO)

O Marco Civil da Internet e a Responsabilização de Intermediários
A aprovação do Marco Civil da Internet colocou fim ao que foi, por muitos anos, uma grande incerteza jurídica no Brasil: o regime de responsabilidade de intermediários. Definir esse regime não resolveu apenas questões de responsabilização, trazendo consequências diretas para o exercício de direitos fundamentais, como assegurou os direitos à liberdade de expressão e ao acesso à informação no Brasil.
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Essa redação recebeu amplo apoio da sociedade, tendo resultado de um longo processo legislativo que contou com grande participação popular, envolvendo interessados e representantes de todos os segmentos.
O dispositivo, central para o quadro regulatório, estabelece uma forma de responsabilidade subjetiva por danos decorrentes da veiculação de conteúdos gerados por terceiros na Internet. A regra se assemelha ao Artigo 230 do Communications Decency Act dos Estados Unidos, que possibilitou a consolidação de plataformas cujo modelo de negócio é estruturado em torno da publicação de conteúdos gerados por terceiros e o desenvolvimento do ambiente virtual como espaço para o exercício da liberdade de expressão de usuários na rede.
O modelo atualmente em vigor no Brasil é considerado como aquele que mais privilegia o exercício da liberdade de expressão e o acesso à informação na rede. Nesse sentido, Frank La Rue, Ex-Relator Especial da ONU para a Promoção e a Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, elogiou explicitamente as legislações de países como Chile e Brasil, que admitem a responsabilização de intermediários de Internet apenas após a apreciação da legitimidade dos pedidos de remoção de conteúdo pelo Poder Judiciário.

O Projeto – Ameaça à Liberdade de Expressão e ao Acesso à Informação
Em sentido contrário às melhores práticas internacionais, a proposta prevê a tipificação como crime das seguintes condutas: (i) deixar de “fornecer, mediante ordem judicial, identificação e log de acesso de usuário, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”; (ii) deixar de “cumprir, no prazo fixado, ordem judicial para a retirada de conteúdo”; e (iii) deixar de “comunicar, prontamente, à autoridade policial ou ao Ministério Público notícia evidente de crime praticado por usuário”.
Para esses casos, o texto prevê aplicação de pena de multa de R$ 10 mil a 1 milhão. O projeto ainda dispõe que a responsabilização da pessoa jurídica independe da responsabilização individual de seus dirigentes ou de quem contribua para o ilícito.
O projeto é desproporcional e põe em risco direitos fundamentais dos nossos cidadãos, especialmente a livre comunicação. O ordenamento jurídico brasileiro valoriza a proteção de registros, dados e comunicações, prevendo, inclusive sanções por eventuais violações, a exemplo do Art. 12 do Marco Civil da Internet.
Construído entre 2007 e 2014, o Marco Civil da Internet foi uma resposta direta à “Lei Azeredo” (Projeto de Lei nº 84/1999), que tinha como objetivo coibir a utilização maliciosa da Internet ao estabelecer penas duras que poderiam resultar na criminalização de condutas banais de usuários.

O projeto atual, portanto, representa um retrocesso ao debate legislativo democrático e nasce da transgressão de valores estimados em nosso ordenamento, não sendo razoável que os fornecedores sejam punidos por resguardar a inviolabilidade das comunicações.
Em primeiro lugar, a proposta desconsidera que nosso ordenamento já prevê mecanismos tecnicamente seguros e juridicamente adequados para disponibilização de conteúdos considerados infringentes e provimento de dados de identificação do usuário após ordens judiciais, como disposto nos Arts. 19 e 21 do Marco Civil da Internet.
O texto proposto ainda desconsidera que juízes e tribunais podem e fazem uso de diferentes mecanismos para garantir o cumprimento de ordens judiciais, além de ser previsto o crime de desobediência no Código Penal. Assim, não há motivos para seja imposto um ônus desproporcional e injustificado sobre os provedores.
Da mesma forma, não podem os intermediários ser responsabilizados penalmente pelo dever de eleger condutadas de usuários que reputem como criminosas, em manifesta violação do princípio da presunção de inocência. Não somente, o projeto infringe o princípio da reserva de jurisdição, ao transformar provedores em juízes e delatores com funções investigativas.
Apenas os órgãos públicos possuem e devem possuir obrigações de vigilância e competências para julgamentos. Caso contrário, imputaremos a eles verdadeira obrigação de monitoramento e censura, transformando o espaço digital em órgãos de investigação e condenação de condutas privadas com efeitos nefastos para todos os envolvidos.
No âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Edison Lanza, Relator Especial para Questões Relacionadas à Liberdade de Expressão, considera problemáticos os regimes de responsabilização que transferem do Poder Judiciário para os intermediários de Internet a responsabilidade de examinar e decidir pela legalidade ou ilegalidade de certos conteúdos.
O caráter privado desses intermediários impede que atuem de forma isenta e legítima na apreciação desses casos, podendo fazer com que interesses econômicos prevaleçam em detrimento da liberdade de expressão e do acesso à informação dos usuários. O crivo judicial é essencial para garantir que pedidos de remoção infundados não suprimam conteúdos legítimos.
Em 2018, estima-se que mais de 60% dos pedidos de remoção de conteúdo na Internet apreciados pelos tribunais foram considerados ilegítimos, infundados ou abusivos. Ou seja, o controle por parte das plataformas implicaria na remoção de manifestações e conteúdos legítimos em manifesta censura prévia.
O texto apresentado, portanto, viola os direitos à privacidade e à liberdade de expressão, bem como ao princípio da presunção de inocência – todos eles consagrados na Constituição Federal. Dentre as atribuições dos provedores de conexão e de aplicações, não cabem, nem poderiam caber, funções de monitoramento ou bloqueio de conteúdos (Art. 9, §3º do Marco Civil).
Não por outro motivo, após profundo debate, o legislador brasileiro alcançou um sofisticado e democrático equilíbrio com o objetivo declarado de evitar mecanismos de controle que resultem no cerceamento à expressão. O regime de responsabilidade atual impede, por exemplo, que as notificações extrajudiciais intimidem as plataformas de Internet, assegurando que os conteúdos permaneçam no ar até que haja decisão judicial declarando-os ilícitos. Caso contrário, as plataformas teriam grandes estímulos econômicos para remover conteúdos de maneira preventiva, afastando risco de eventual responsabilização.
A liberdade de expressão é tanto fundamento como condição para o pleno exercício do direito de acesso à rede mundial de computadores (Arts. 2º, 3 e 8º do Marco Civil), devendo ser considerada por qualquer iniciativa que busque alterar a alocação de direitos e deveres análogos à cidadania digital.
Essa questão é objeto da Declaração Conjunta sobre a Liberdade de Expressão e Internet (ONU, OEA, OSCE e CADHP), segundo a qual, “não se deveria exigir dos intermediários que controlem conteúdo gerado por usuários”. Afirma-se ainda que as plataformas não devem ser responsáveis por esse conteúdo, salvo na hipótese de se negarem a cumprir ordem judicial tendo condições de fazê-la – exatamente o que já estabelece a nossa legislação.
Seguindo o mesmo entendimento, Relator Especial da ONU para a Promoção e a Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, David Kaye, chamou atenção para os riscos de modelos que pressionem os intermediários de Internet para promover a remoção de conteúdos gerados por terceiros antes de apreciação judicial.
Um relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU destacou que essa pressão costuma resultar em um aumento dos casos de remoção de conteúdos lícitos, o que interfere diretamente no grau de tutela conferido à liberdade de expressão no ambiente digital.
Segundo o Superior Tribunal de Justiça, violar o princípio do não monitoramento da Internet significaria impor censura prévia, equiparando-se “à quebra do sigilo da correspondência e das comunicações” com “enorme retrocesso ao mundo virtual, a ponto de inviabilizar serviços que hoje estão amplamente difundidos no cotidiano de milhares de pessoas.”.
Seguindo esse mesmo caminho, a Lei Geral de Proteção de Dados coloca em ainda maior evidência o valor e a proteção do direito à privacidade. É fundamental que as iniciáticas legislativas caminhem em direção às conquistas democráticas que nos permitem hoje nos comunicar e nos expressar livremente, sob pena de perdemos aquilo de mais caro para o nosso ordenamento.
Não apenas, o resultado pretendido pelo projeto, como qualquer tentativa de alcançá-lo, esbarra no monitorando constante de tudo e de todos, isto é, na violação da privacidade e na censura prévia, em afronta à Constituição, bem como ao Marco Civil da Internet e à Lei Geral de Proteção de Dados.
O tema da responsabilidade de intermediários, entretanto, transcende a importante questão da liberdade de expressão dos usuários de Internet. Ele é também importante como elemento impulsionador do próprio desenvolvimento da infraestrutura digital por conferir segurança e previsibilidade.
O ecossistema de inovação ampliado da Internet depende de algum grau de proteção para as aplicações, sendo importante destacar a importância de o modelo de responsabilidade de intermediários funcionar também como catalisador da inovação.
Como ocorre hoje, a responsabilização deve acontecer em cima do mau uso dos elementos constituintes da Internet, mas eles devem estar disponíveis para atividades e empreendedorismo. A Internet, portanto, deve continuar a ser uma rede aberta e tecnologicamente neutra, capaz de sustentar uma gama sempre crescente de serviços e aplicações que podem ser desenvolvidas.
Por todas as razões acima expostas, tanto o texto original do PL 11.252/2018 quanto o Substitutivo proposto devem ser REJEITADOS.