Instauração de inquérito administrativo
Ao propor a instauração de inquérito administrativo sempre que um agente econômico detenha um terço ou mais do mercado relevante, o projeto desconsidera elementos e conceitos chave da defesa da concorrência. Da mesma forma, o texto também cria obstáculos a novos mercados desenvolvidos a partir de inovações tecnológicas, vez que o progresso vem muitas vezes do surgimento de monopólios, não da competição.
- Em primeiro lugar, o poder de mercado por si só não é considerado ilegal, tão somente o abuso desse poder a partir da adoção de condutas que possam, ainda que potencialmente, causar danos à livre concorrência (Art. 173, § 4º da CF; Art. 1º e Art. 36, caput da LDC).
- Como comparação, seria como se procedimentos investigatórios fossem instaurados contra todos os agentes públicos do país tão somente em razão da posição que ocupam, mesmo sem a existência de qualquer indicativo de ilícito.
- O projeto desconsidera toda a lógica da defesa da concorrência e as melhores práticas internacionais. A International Competition Network e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estabelecem que é o abuso de posição dominante que deve ser coibido e não a posição dominante em si1.
- Desconsidera também a existência de monopólios e oligopólios naturais e as hipóteses em que a concentração de mercado é benéfica aos consumidores, como o fornecimento de energia.
1 “All jurisdictions agree that unilateral conduct laws address specific conduct and its anticompetitive effects, rather than the mere possession of dominance/substantial market power or its creation through competition on the merits.” ICN Unilateral Conduct Working Group. Dominance/Substantial Market Power Analysis Pursuant to Unilateral Conduct Laws, 2018; “Holding a dominant position, jointly dominant position, a monopoly or a position of substantial market power is generally not abusive or illegal. However, some behaviour by such firms is. The definition of what is abusive, or at least what is illegal, should depend on the objective of the law.” OCDE, Abuse of Dominance and Monopolisation, 1996. - Não por acaso, podemos encontrar agentes econômicos que detêm poder de mercado em todos os setores da economia em âmbito nacional, como, bebidas e comércio eletrônico, a exemplo da Raízen, da AmBev e do Mercado Livre, respectivamente. Cenário que se reproduz em mercados regionais e locais, também de competência do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
- Outro ponto que passa despercebido pela proposição é o fato que inovações tecnológicas, em um primeiro momento, geram naturalmente mercados concentrados, uma vez que produtos e serviços disruptivos são introduzidos por poucos agentes antes de se difundirem. Ou seja, toda inovação seria ameaçada e desestimulada.
- Com uma frequência nunca vista antes, novos modelos de negócios são desenvolvidos a partir da criação de algo ainda não feito antes. O progresso, portanto, vem da inovação empreendida primeiramente por um único agente – monopolista em um primeiro momento – que catalisa uma mudança geral. Por definição, como exemplo, as startups nasceriam investigadas.
- Além disso, não existe mercado relevante pré-determinado. O conceito é um instrumento de análise estruturado para cada caso concreto com a finalidade de identificar se diferentes produtos competem entre si. A definição do mercado relevante é uma fase processual específica e implica, necessariamente, a delimitação de serviços ou produtos e do espaço geográfico em questão.
- Ou seja, a mera definição do mercado relevante requer o desenvolvimento de análises e estudos por parte do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Em termos práticos, a autarquia teria que abrir centenas ou mesmo milhares de procedimentos para todas as modalidades de produtos e serviços antes mesmo de poder analisar as condutas empresariais.
10.O que sequer é viável ou mesmo alinhado com o interesse público, considerando as limitações estruturais – financeiras e pessoais – da autarquia. Como resultado, o órgão investiria recursos em procedimentos desmotivados e estaria impedido de apurar condutas relevantes e com indícios efetivos de infração que afetam diretamente a livre concorrência e prejudicam os consumidores.
11.A legislação de defesa da concorrência já estabelece parâmetros, segundo os quais são instaurados inquéritos administrativos para a apuração de infrações à ordem econômica,
e mesmo procedimentos preparatórios para os inquéritos. A legislação também prevê mecanismos preventivos de controle de operações e mesmo de condutas empresariais. 12.Os inquéritos são hoje iniciados por iniciativa própria da autarquia, por representação de interessados, por denúncias e também por representações do Congresso Nacional, do Ministério da Economia e da Procuradoria Federal Especializada. Não por acaso, o sucesso da política defesa da concorrência brasileira é reconhecido internacionalmente, inclusive pelo Peer Review da OCDE2.
2 OCDE (2019), Revisão por Pares da OCDE sobre Legislação e Política de Concorrência: Brasil. www.oecd.org/daf/competition/oecd-peer-reviews-of-competition-law-andpolicy-brazil-2019.htm.